Arquivo morto revela história de vida do primeiro nascimento em Jaguariúna
- Gustavo Santos
- há 7 dias
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Atualizado: há 3 dias

Se todas as histórias fossem recontadas 20, 30 anos depois, talvez alguns detalhes se perderiam pelo caminho. Já o sentimento que aquele momento da vida provocou na gente, esse jamais sairia do rumo da nossa memória.
Recontar histórias tão pessoais é um privilégio para quem se dedica diariamente a publicar relatos que expõem a vida real. Apuramos, ouvimos, aprendemos, nos emocionamos e às vezes fazemos relações duradouras entre fonte e jornalista, em confiabilidade mútua.
Esse enredo é para trazer aos nossos leitores e seguidores das redes, um pouco do que aconteceu dias atrás. Algo que, diante de um contexto atual, pode ter importante significado para ser preservado na memória de alguém. E, por isso, nos dedicamos nesta história.
Quando cortava caminho por entre ruas de um bairro em Jaguariúna, há pouco mais de uma semana, passei ao lado de um galpão que, igual a todos os demais, chamou a atenção por uma quantidade enorme de caixas de papelão, debaixo de chuva e a olho nu.
Quem busca histórias como eu, enxerguei naquela montanha de papel algo relevante para, no mínimo, manter a curiosidade da profissão sadia. Dali mesmo, já obtivemos a informação de que se tratava de um vasto arquivo ‘morto’, e que o destino seria o descarte. Tudo checado, publicamos a notícia mais tarde naquele dia.
No entanto, ao sair do grande almoxarifado municipal, observei uma folha de papel branca colada na roda do carro. Ventava e chovia fino.

Ao descolar o papel, reparei que no centro da folha havia um recorte de jornal. Nele, uma nota comemorativa com o título de “1º Aniversário”, ilustrava a foto de uma bebê, cabelos claros e de vestido.
Dada a importância daqueles documentos prestes a serem triturados, de onde voou aquela simples folha com o timbre do Hospital Municipal Walter Ferrari, com certeza deveria haver outras histórias, de pessoas, conquistas, anúncios da saúde de Jaguariúna. Se houve ou não critério para o descarte, tomei pra mim o fragmento do arquivo grudado no meu carro, e pus primeira marcha atrás da história.
Há 25 anos
Também chovia às 7h05, do dia 6 de janeiro de 1999, no momento em que nascia Yasmim, de parto normal da mamãe Juliana. Com 3,4 quilos, as primeiras fotografias mostravam uma criança saudável e, também, muito festejada. Os holofotes naquele pequeno bebê de 48 centímetros deram merecido destaque nos jornais locais.
Afinal, Yasmim foi a primeira criança a nascer na recém-criada Maternidade do hospital Walter Ferrari.
Estavam todos entusiasmados com a sua chegada, assim como para o novo momento vivido na Saúde do município. Além de Yasmim, horas depois nasceram Gabriela e Brenda, também naquela quarta-feira.
Juliana de Oliveira, que tinha acabado de completar 15 anos, lembra como foi o clima de festa naquele dia do parto, e de como Yasmim veio ao mundo com familiares e profissionais da saúde municipal desejando boas-vindas.
Um momento em que os pais de Juliana, principalmente, sentiram que aquela preocupação com a gravidez da adolescente começava a se dissipar, com a chegada da primeira neta. E toda aquela tietagem com a bebê, claro, ajudou a amenizar o clima na família.
Juliana começava a escrever aquele novo capítulo uma tarefa a mais na sua vida: a desafiadora missão de ser mãe sem a presença do pai, companheiro, e uma outra referência para a vida da filha. As aventuras da idade lhe trouxeram alegrias, mas também mostraram a Juliana as consequências e as decisões antecipadas que precisou tomar enquanto adolescente.

Os encontros
Segurando em uma das mãos a folha da notícia de Yasmim, com a outra bati na porta de madeira, número 22, de um dos blocos do condomínio de prédios Jaguariúna I, no bairro Cruzeiro do Sul. Não percebi o horário, mas estava próximo do almoço.
Apesar de iniciar o dia com anedotas do 1º de Abril, era totalmente verdadeiro aquele endereço que estava em minhas mãos, e que horas antes eu buscava por informações. Juliana de Oliveira abriu a porta depois de alguns minutos e, como alguém que não esperava visitas e um pouco desconfiada, logo percebeu do que se tratava.
Olhou o recorte de jornal, e disse: “Minha filha, Yasmim!”.
Um entusiasmo com pitada de ansiedade percorreu a atenção de Juliana enquanto eu explicava o motivo de estar lhe procurando. Ela entendeu, se emocionou, e então iniciamos a conversa. Na sala, um garoto de 12 anos, vendo televisão, também olhou a foto de Yasmim e sorriu. Ele é segundo filho de Juliana, do segundo relacionamento.
“Depois de tanto tempo, por que é que vão jogar fora? Não tinha necessidade. Se guardou até agora, o porquê disso?”, indagou Juliana, olhando para a folha que tinha acabado de receber como lembrança.
Hoje com 26 anos, Yasmim mora em Campinas e está casada. Ao longo da semana conversamos virtualmente, trocamos mensagens e falamos sobre sua trajetória até aqui – sendo boa parte dela em busca de conhecer seu verdadeiro pai. Em vídeo-depoimento, Yasmim nos emprestou alguns minutos para transmitir diante de uma câmera, um lado da vida muito pessoal, delicado de relatar.
Mulher madura, dedicada À formação da sua família e agradecida por quem a ajudou até agora. Essas são as características que pude perceber nos depoimentos. A mãe, Juliana, também batalhadora, trabalha de supervisora em uma firma, e como síndica no local onde mora.
Juliana e Yasmim não se falam com muita frequência. Faz alguns anos que a relação entre elas passa por ajustes contínuos. A mãe entende o motivo, e Yasmim compreendeu o processo. Mas foi duro, com certas mágoas, e hoje a distância é a opção.
O início de tudo
Pouca gente sabe, mas os grandes pinheiros que ornamentam e protegem a fachada do hospital municipal têm significado especial. Mais de uma dezena dessas árvores representam cada criança nascida naquela recém-inaugurada ala de parto do hospital.
Com Yasmim no colo, Juliana se lembra do dia do plantio do pinheiro que representa a filha: o primeiro da esquerda, ao lado do atual Pronto Atendimento Infantil (PAI).
“No primeiro aniversário da Yasmim e das outras meninas, o Hospital fez um enorme bolo, e ainda encomendou bolos para as famílias das três crianças”, recorda na sequência.

Por conta de discordâncias e desencontros no início de seu relacionamento com o pai de Yasmin, os avós maternos sempre foram um porto seguro para a menina, acolhendo a neta em casa. A coleção de fotografias, recortes de jornais e revistas da época ficaram com a jovem, e ela foi recomeçar uma nova jornada de autoconhecimento e propósitos.
Percebi os olhos de Juliana se enchendo de lágrima no momento em que eu mandava um áudio para Yasmim, contando sobre ter encontrado o recorte de jornal, a conversa com a sua mãe, e solicitando a possibilidade de contar a sua versão.
Agradeci Juliana por ter aceitado relatar todas aquelas emoções pessoais, e então me despedi, com parte do dever cumprido – de ao menos entregar a ela um registro da memória afetiva. Agora guardado no arquivo vivo da história.

A procura, o presente e em paz
No dia seguinte, Yasmim retornou ao meu contato e se dispôs relatar tudo que perguntei sobre sua vida, desde as capas de jornais até os dias de hoje.
Seus depoimentos foram gravados em pequenos vídeos, e esse conteúdo compõe o material final publicado nas plataformas on-line do O Jaguar. Nesses relatos, Yasmim fala sobre a busca pelo pai biológico depois desses 26 anos. Mas afirma que o que antes era obstinação, hoje tornou-se “somente uma curiosidade”.
“Não é algo que eu precise. Se por um acaso eu encontrar, tudo bem. Mas se não, tudo bem também. Hoje em dia minha cabeça é totalmente diferente de quando eu tinha 18 anos”, conta.
Casada, ainda não tem filho e diante do passado, Yasmim projeta um futuro diferente para sua família.
“Eu quero construir uma família eu espero não cometer os mesmos erros. Quero ter uma família tradicional, com respeito, com carinho, com amor, em um lar diferente de onde eu fui criada”.
Ela recorda que com o passar dos anos encontrou muitas pessoas que lhe aconselharam, acolherem e lhe ajudaram a dissipar algumas nuvens que encobriam seus pensamentos.
Dentre essas pessoas, Yasmim lembra-se de um homem, que afirmava conhecer a história da jovem e via semelhanças com a dele. “Ele disse para mim: ‘Yasmim, você teve uma pessoa que te criou?’, e eu disse que ‘sim’. Então ele pediu para me contentar com isso, pois eu tive a presença de uma figura da família”, recordou.
Essa mesma pessoa plantou em Yasmim uma importante semente da dúvida sobre que tipo de pessoa ela encontraria depois de anos. Que tipo de personalidade poderia ter seu verdadeiro pai? Seria uma boa pessoa ou não?

“Desde então me contento com o que eu tive e as pessoas que estiveram ao meu redor. Sou muito grata a todos”.
Independentemente dos capítulos vividos por Juliana e Yasmim até aqui, essa trama é realidade para centenas de pessoas que, por alguma ocasião, não viveram próximas a seus pais ou parentes. Entre as dores e lembranças, é fato que mãe e filha fizeram história em determinado período em Jaguariúna.
Continuarão suas jornadas, agora com mais uma memória preservada em forma de reportagem. Missão cumprida para o jornalista!
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